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BNZ em foco

Lei Maria da Penha, Uma Conquista Civilizatória

Publicada em: 25/09/23

23/05/2018

 

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) foi publicada em agosto de 2006, após a ocorrência de um caso judicial emblemático, sendo também fruto de um conflito social que permeou a história do Brasil.

Em um relato sucinto do caso judicial que ensejou à elaboração da lei, em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de um tiro de arma de fogo enquanto dormia, desferido por seu marido Marco Antônio Heredia Viveiros, colombiano naturalizado e professor universitário. O disparo atingiu-a pelas costas, tornando-a permanentemente paraplégica. Nesta ocasião, o agressor, em sua defesa, alegou que ladrões teriam adentrado a residência do casal e baleado sua esposa.

Após cerca de quatro meses de internação hospitalar, ela retornou à sua residência e se tornou vítima de uma segunda tentativa de homicídio praticada por Marco Antônio, consistente em uma tentativa de eletrocussão durante o banho.

Em 1984, Maria da Penha ingressou com medidas judiciais, conseguindo autorização para deixar sua casa, junto com suas três filhas. Em 1991, oito anos após o crime, foi realizado o primeiro julgamento do caso, quando Marco Antônio foi condenado a 15 anos de prisão pelo tribunal do Júri. 

Nesta ocasião, entretanto, sua defesa apresentou recurso de apelação contra a decisão do júri extemporaneamente, afirmando que haveria vícios na formulação dos quesitos de votação aos jurados. Paralelamente, o réu não foi preso preventivamente. Três anos depois, em 1995, o Tribunal de Justiça, na decisão sobre o recurso de apelação, acolheu a alegação defensiva e anulou a decisão do Júri.

No ano seguinte, foi realizado o segundo julgamento pelo Júri, em que Marco Antônio foi condenado a dez anos e seis meses de prisão. Entretanto, novamente, a defesa ingressou com recurso de apelação extemporâneo, alegando que o julgamento se deu em contrariedade com as provas dos autos e logrou êxito, mais uma vez, em evitar a prisão provisória do réu.

Então, em 1997, Maria da Penha, por meio das ONGs CEJIL (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional) e CLADEM (Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher), ofereceu denúncia à OEA – Organização dos Estados Americanos contra o Brasil, pelo descaso com que a violência contra a mulher vinha sendo tratada no país. Não obstante o país fosse signatário da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, violava reiteradamente diversos dispositivos de ambas as convenções.

Após 17 anos sem proferir uma sentença definitiva, o Brasil foi, então, condenado em 2001 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violar os artigo 1º, 8º e 25º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que tratam, respectivamente, da obrigação do Estado em respeitar e garantir o livre exercício dos direitos de seus cidadãos, sem qualquer tipo de discriminação; das garantias judiciais; e da obrigação estatal em oferecer proteção judicial, garantindo à toda pessoa um meio de acesso simples e rápido ao Poder Judiciário a fim de obter proteção contra atos que violem seus direitos fundamentais. Além disso, a Corte menciona também a violação ao artigo 7º da Convenção de Belém do Pará, que impõe a obrigação ao Estado de despender esforços para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.

Em sua decisão, a Comissão consignou que: “(...) as decisões judiciais internas neste caso apresentam uma ineficácia, negligência ou omissão por parte das autoridades judiciais brasileira e uma demora injustificada no julgamento de um acusado, bem como põem em risco definitivo a possibilidade de punir o acusado e indenizar a vítima, pela possível prescrição do delito.”[1]

Afirmou, ademais, que a falta de julgamento do agressor de Maria da Penha constituiria verdadeira tolerância por parte do Estado com relação à violência sofrida pela vítima, agravando ainda mais seus danos. Neste cenário, a tolerância à violência contra a mulher não seria um evento casuístico, mas, sim, uma pauta sistemática. “Trata-se de uma tolerância de todo o sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher” [2] afirmou.

Considerando que a violação contra Maria da Penha seria parte de um padrão geral de negligência e falta de efetividade do Estado, a Comissão decidiu que o Brasil violara os deveres de processar, condenar e de prevenir esta violência degradante. “Essa falta de efetividade judicial geral e discriminatória cria o ambiente propício à violência doméstica, não havendo evidência socialmente percebida da vontade e efetividade do Estado como representante da sociedade, para punir esses atos.”[3]

Desta forma, foi elaborada uma série de recomendações ao Estado brasileiro, listando medidas a serem adotadas para intensificar o processo de reforma sistêmica. Dentre elas, podemos citar: a adoção de medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados; a simplificação de procedimentos judiciais penais para que seja acelerado o tempo de tramitação dos casos; o estabelecimento de formas eficazes, alternativas às judiciais, de solução de conflitos intrafamiliares; a inclusão nos planos pedagógicos de pautas destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos.

Ante a ausência de resposta do Estado brasileiro, a Comissão decidiu reiterar as conclusões e recomendações e tornar público o relatório elaborado e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembleia Geral da OEA.  A partir disso, em 2002, Marco Antônio Heredia Viveiros foi preso, dando início ao cumprimento de sua pena 19 anos após ao cometimento do crime e apenas 6 meses antes da ocorrência da prescrição punitiva.

Posteriormente, em 07 de agosto de 2006, foi elaborada a Lei 11.340, que foi nomeada de “Lei Maria da Penha” em homenagem à vítima do caso judicial que ensejou sua elaboração. Esta Lei criou mecanismos judicialmente inovadores para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, buscando efetivar direitos previstos nas convenções internacionais de direitos humanos já mencionadas, além de visar a efetivação concreta de dispositivos previstos na própria Constituição da República, a exemplo dos arts. 3º e 226, § 8º.

A partir deste diploma normativo, foram criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de forma que os casos desta natureza passaram a tramitar em varas especializadas para a sua melhor solução. Além disso, foram positivadas diretrizes para a atuação da polícia neste tipo de crime, estabelecendo parâmetros de especial proteção à vítima; bem como obrigações ao Poder Público de criar programas e implementar medidas para reduzir a violência contra a mulher, tais como a realização de campanhas educativas, a criação de instituições e a capacitação de profissionais para atendimento e tratamento das vítimas.

Ademais, a Lei conceitua a violência doméstica como um fenômeno multifacetado, que abrange a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Modificou também dispositivos do Código de Processo Penal e do Código Penal, impossibilitando o tratamento da violência doméstica como “crime de menor potencial ofensivo”, submetido ao rito sumaríssimo. 

Por fim, consagrou legalmente as medidas protetivas de urgência, por meio das quais a vítima pode requisitar ao juiz proteção antes que a situação a que se encontra submetida chegue a níveis alarmantes. Estas medidas protetivas podem ser dirigidas ao agressor ou à vítima. 

Dentre aquelas dirigidas ao agressor estão a possibilidade de suspensão da posse ou restrição do porte de armas; o afastamento do lar ou determinados locais de convivência com a ofendida; a proibição de aproximação ou contato, por qualquer meio, com a ofendida, seus familiares e testemunhas; a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; a prestação de alimentos provisórios. 

Dentre as medidas dirigidas à vítima estão a possibilidade de encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa especial de proteção e atendimento; de determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; de determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; de determinar a separação de corpos. 

A Lei Maria da Penha representou, sem dúvida, uma enorme conquista civilizatória da sociedade frente ao descaso com que a violência doméstica era tratada no país e as inúmeras situações degradantes as quais muitas pessoas, no âmbito de suas relações familiares, em sua maioria mulheres, eram expostas. Entretanto, não restam dúvidas de que muitos dispositivos estabelecidos na Lei ainda permanecem inaplicados e que as vítimas de violência doméstica ainda enfrentam inúmeras dificuldades na tentativa de obtenção de proteção estatal. 

A Lei Maria da Penha foi um primeiro passo na longa caminhada que o país precisa percorrer para erradicar a violência doméstica e garantir a proteção dos Direitos Humanos de todos os seus cidadãos, sem qualquer forma de discriminação.  

 

Mariana Murad Leiva

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