BNZ em foco
Por dentro da regulação de moedas virtuais no Japão: por que devemos ficar atentos?
03/05/2017
A imponente legislação sobre moedas virtuais e a sua importância para o Brasil e para o mundo.
No primeiro dia de abril começou a vigorar no Japão algumas alterações na Lei Bancária (Banking Act), Lei de Serviços de Pagamento (Payment Services Act) e Lei de Prevenção de Transferência de Produtos do Crime (Act on Prevention of Transfer of Criminal Proceeds), com a inclusão nessas leis de disposições acerca de moedas virtuais, como o Bitcoin.
As emendas são fruto de um longo processo de discussão que começou, notadamente, após a bancarrota da MtGox em fevereiro de 2014, maior exchange de Bitcoins do mundo à época.
Com a emenda introduzida, passa a constar no artigo 2, item 5 da Lei de Serviços e Pagamentos (Payment Services Act) a definição de moeda virtual, como sendo tudo aquilo que, conjuntamente:
1. Possa (a) ser utilizado como pagamento em uma compra, venda, empréstimo ou transação de serviços por pessoas indiscriminadas ou (b) ser trocado por moeda oficial;
2. Possua valor como ativo; seja registrado eletronicamente; não seja baseado em moeda oficial japonesa ou estrangeira; e seja transferido eletronicamente.
A definição se faz necessária para evitar confusão entre o novo conceito de moeda virtual, que não é emitida por instituições, seja empresa ou governo, podendo ser utilizada por qualquer pessoa indiscriminadamente e moeda eletrônica, que ao contrário, é emitida e controlada por instituições e só pode ser utilizada pelas próprias ou por pessoas especificadas pelas mesmas.
É importante ressaltar que isso não significa que as moedas virtuais são moedas oficialmente reconhecidas pelo Japão como o dólar ou o euro, mas apenas que são um método de pagamento oficialmente reconhecido. Essa diferenciação é importante pois, sendo assim, as moedas virtuais até o momento não se submetem diretamente à Lei Bancária (Banking Act) ou à Lei de Instrumentos Financeiros e de Câmbio (Financial Instruments and Exchange Act).
Sob o argumento de aumentar o controle contra crimes financeiros e aumentar a segurança de investidores e usuários, a emenda traz robusta regulação para as exchanges, o que era esperado, tendo em vista a impossibilidade dos governos em interferir diretamente nas moedas virtuais devido à sua característica descentralizada, o que não acontece com as exchanges - há exceções -, principal meio de aquisição e troca de moedas virtuais.
Em função da emenda, o serviço de exchange passa a ser definido na PSA, consistindo: na intermediação e gestão de dinheiro ou moedas virtuais de clientes na compra, venda ou troca dessas moedas[1].
A quem queira prover esse tipo de serviço é preciso obter uma licença que só será concedida à empresa que provar[2]:
1. Ser registrada como empresa de ações (kabushiki kaisha) ou companhia estrangeira que possua registro equivalente a uma kabushiki kaisha;
2. Possuir ativos suficientes para o desempenho da atividade de acordo com os critérios estabelecidos no Cabinet Office Ordinance;
3. Possuir infraestrutura que proporcione a segurança na prestação dos serviços de câmbio de moedas virtuais.
Na prática, os serviços de brokers individuais de moedas virtuais não se submetem à PSA, contanto que se limitem à sua compra e venda.
Além disso, a emenda também deixa expressa a obrigação das exchanges em oferecer explicações aos clientes sobre moedas virtuais, esclarecer os termos do contrato de negociação (trading) e gerenciar separadamente os ativos da empresa e de clientes[3]. Para garantir que isso ocorra, as exchanges serão submetidas à auditoria de um contador público periodicamente[4].
A todo momento as autoridades competentes poderão inspecionar a exchange e, caso encontrem alguma falha, expedir ordens de melhoria, podendo revogar o seu registro em caso de violação à lei ou ao cumprimento das ordens, e ainda, determinar a suspensão parcial ou integral dos serviços por determinado período não superior a 6 meses. Para atingir seus objetivos, a exchange poderá estabelecer regras sobre o seu funcionamento, caso considere necessário, para aquilo que não for objeto de regulação pela emenda.
A PSA possui um capítulo voltado para as sanções penais[5], que agora se aplicam aos prestadores de serviços de exchange. A lei prevê penas que vão de multa à prisão pelo período de até três anos para quem, por exemplo: oferecer serviços sem a devida licença, conseguir a licença por meios fraudulentos, violar ordem de suspensão dos serviços etc.
Com relação à Lei de Prevenção de Transferência de Produtos do Crime (Act on Prevention of Transfer of Criminal Proceeds), por meio da modificação do seu segundo artigo, as exchanges entram na lista das instituições que são obrigadas a manter registros de transações de seus clientes, verificar a identidade dos seus usuários - mantendo um perfil completo de cada -, e a notificar às autoridades qualquer movimentação suspeita[6].
Essas medidas têm por objetivo afastar o anonimato oferecido pelo uso de algumas moedas virtuais na tentativa de evitar golpes e crimes financeiros em geral. Vale lembrar que algumas delas possuem anonimato como feature, a exemplo da Monero, Vcash etc.
A emenda que sofreu a Lei Bancária (Banking Act), implicou na expansão do escopo de holdings financeiras e permissão aos bancos japoneses de aumentar a sua participação por meio de investimentos equity em novas empresas Fintech.
Anteriormente os investimentos das holdings e bancos estavam legalmente limitados participar com apenas 15% e 5%, do capital dessas empresas. Com a emenda, o limite passa a ser estabelecido caso a caso, por meio de avaliação que deverá evitar a supressão da concorrência[7].
Em função disso, os três maiores bancos do Japão já anunciaram investimentos na maior exchange de moedas virtuais do país, o que certamente eleva a percepção de credibilidade das moedas virtuais pelo público em geral a outro patamar.
No Brasil, existe um Projeto de Lei que pretende oficializar o reconhecimento das moedas virtuais como “arranjos de pagamento”, submetendo a sua regulação expressa e diretamente ao Banco Central.
Com esse reconhecimento, as moedas virtuais passariam a integrar o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), composto pelo conjunto das entidades, sistemas e procedimentos relacionados ao processamento e à liquidação de operações de transferência de fundos, operações com moeda estrangeira, ativos financeiros e valores mobiliários.
Caso o projeto seja aprovado, o funcionamento e a fiscalização das exchanges no Brasil será submetida ao Banco Central, na medida em que se tornarão instituições de pagamento sob a ótica da Lei 12.865, de 9 de outubro de 2013.
Em 2014 o Banco Central publicou um comunicado no qual adota uma posição neutra com relação às moedas virtuais, colocando-se como observador das “discussões nos foros internacionais sobre a matéria - em especial sobre a sua natureza, propriedade e funcionamento -, para fins de adoção de eventuais medidas no âmbito de sua competência legal, se for o caso”.
Àquela época, de fato o ecossistema das moedas virtuais era muito menor. Hoje o mercado de moedas virtuais representa quase 30 bilhões de dólares e continua em forte tendência de crescimento. Somente no Japão, a previsão é de que mais de 260 mil lojas aceitarão Bitcoin ainda neste ano. No Brasil, mais de 60 lojas já aceitam Bitcoin como pagamento, segundo a Negocie Coins. De acordo com o relatório elaborado pela BitValor, em 2016 foram negociados 363 milhões de reais em Bitcoin no país.
Dado que o Japão possui, simultaneamente, a maior fatia do mercado de moedas virtuais e a legislação mais desenvolvida sobre o tema, provavelmente o seu conteúdo servirá de inspiração para diversas regulações ao redor do mundo.
A Cingapura, que também planeja regular o uso das moedas virtuais, já assinou em março um acordo de cooperação com o Japão em matéria de inovação de serviços financeiros, por exemplo.
Com a acelerada globalização dos mercados a competitividade aumenta cada dia. No atual cenário, onde os custos marginais de produção caminham rapidamente em direção a zero, as moedas virtuais vieram para ficar, principalmente devido às suas vantagens no âmbito dos custos, velocidade, alcance e confiabilidade se comparado aos sistemas financeiros conhecidos.
O mercado financeiro, por sua vez, aguarda ansiosamente pela regulação das exchanges de moedas virtuais em todo o mundo. Isso porque, a falta de regulação é um dos principais motivos que impedem a criação de produtos bancários, fundos de índices, derivativos etc., dificultando aportes institucionais nesse mercado.
Quando do julgamento do primeiro pedido de criação de ETF baseado em Bitcoin que aconteceu em Nova Iorque, em março deste ano, a Securities And Exchange Comission - órgão parecido com a CVM que conhecemos - negou o pedido alegando que a criação do ETF representaria demasiada exposição a riscos de fraude e manipulações devido ao fato de que significativos mercados da moeda são desregulados, além de inexistirem acordos de vigilância entre eles.
Conclusão:
Milhares de startups planejam adotar ou já possuem moedas virtuais em seu plano de negócios, para que as regulações não representem um entrave - como aconteceu em Nova Iorque quando da entrada em vigor da BitLicense em 2015, causando a fuga e o fechamento de dezenas de empresas na região -, é preciso equilibrar as normas de modo que em nome da segurança, não se inviabilize novos modelos de negócios, forçando-os à escolha entre a informalidade ou à falência.
A legislação japonesa é comemorada por quem acredita que ela representa um avanço no combate a crimes financeiros e na proteção ao consumidor, além de ser um importante passo para a inserção das moedas virtuais no mercado financeiro regular. Todavia, é inegável que ela traz consigo um arcabouço burocrático que eleva substancialmente - mais do que a BitLicense - os custos para obtenção de licença e operação de empresas que querem operar moedas virtuais, dificultando o desenvolvimento de startups naquele país.
O blockchain e naturalmente as moedas virtuais que existem a partir de sua tecnologia, são considerados elementos da quarta revolução industrial. O ideal seria que as mudanças regulatórias que estão por vir não comprometam nosso ecossistema de startups por excessos regulatórios que as inviabilize, forçando a sua saída para países de economia mais livre; mas que permitam a inserção das moedas virtuais no mercado financeiro, o que significará um avanço para a consolidação de grandes projetos.
[1] Artigo 2, item 7 da PSA modificada.
[2] Artigo 62, item 2 da PSA modificada.
[3] Artigo 63 da PSA modificada.
[4] Artigo 63, item 11 da PSA modificada.
[5] Capítulo VIII da PSA.
[6] Artigos 3 e 4 da PTCP.
[7] Artigo 16, item 2 e Artigo 52, item 23 da BA modificada.
Edgar Aboboreira
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